23 março 2009

Elogio da surdez

Ó Manela, não é que ninguém te ouça...

É que ninguém ter quer ouvir, o que é bem diferente.

You old senil...

18 março 2009

Estúpido pontífice

Se algo me enerva é o alheamento da realidade, o total desfasamento com o mundo, suas verdades e consequências.
A Igreja, lá no alto, tão alto que quase não se vê, da sua altíssima sabedoria e bom senso, é tradicionalmente e recorrentemente quem mais me enerva neste particular.
Agora, uma vez mais, pela voz do sumo Bento XVI e num périplo por terras africanas, o continente mais afectado do planeta, veio sem leviandade e pudor falar sobre o flagelo da SIDA.
O "Rato Zinger", como gentilmente o denomino com todo o carinho que me merece, veio a terreiro afirmar que esta tragédia "não pode ser resolvida só com dinheiro, nem pode ser resolvida com a distribuição de preservativos, que pode até aumentar o problema". Para ele, que no seu dia-a-dia no Vaticano lida certamente com famílias destruídas pelo vírus, crianças infectadas, povoações dizimadas, condições de saúde miseráveis, a solução passa antes pelo "despertar humano e espiritual" e pela "amizade para com aqueles que sofrem".
Pois sim.
Citando Aristóteles, "Deus é demasiado perfeito para poder pensar noutra coisa senão em si próprio". Pelos vistos, tinha toda a razão.
A mim apetece-me aconselhar muita prudência e ponderação à Igreja e suas instituições, algum discernimento aos seus mentores, muito juízo, e sobretudo uma grande dose de moderação nas palavras que proferem.
Aconselho ao Papa viver dois anos em África, mesmo que uns meses ou uns dias bastassem para sentir e experienciar na pele a triste realidade diária, os caminhos adversos que por lá se percorrem, o ambiente hostil, o espaço escuro e lúgubre apesar da luz, mas para quê quando visivelmente o que basta é um pouco de sensibilidade e compaixão? Aconselho a olhar mais para o mundo e menos para o espelho, porque o espelho do mundo está a ficar mais baço e obscuro à sua conta.
Sabe-se que abstinência ou fidelidade são para a Igreja as duas únicas maneiras de prevenir o contágio, mas que a solução para a SIDA é o "despertar humano e espiritual" e a "amizade para com aqueles que sofrem" é novidade. A partir de agora organizações como a AMI ou a "Médecins sans Frontiéres" quando confrontados com pessoas infectadas certamente oferecerão a sua amizade em vez de remédios. E que os perservativos podem até piorar o problema, essa então. O senhor da bata branca anda claramente a ler os livros errados.
Parece-me óbvio que é necessário educar as pessoas no sentido de adoptarem estilos de vida de menos risco, mas todos sabemos que isso muitas vezes não acontece e temos que viver com essa realidade, não numa "la la land" em que todos somos fiéis, abstémios, amigos uns dos outros e espiritualmente despertos. Isso não existe.
Muitas vezes pergunto-me o que diria Jesus desta sua Igreja. A mim apetece-me dizer: "bardamerda!".
Ah, é verdade, esta é mesma Igreja que pela voz do Arcebispo de Olinda, no Brasil, excomungou os médicos, a mãe e outros familiares, que salvaram uma rapariga de nove anos grávida de gémeos após ter sido violada pelo padastro, por estes terem permitido e realizado um aborto. O abusador, esse, sai incólume aos olhos de Deus.

12 março 2009

O défice da normalidade

Uma vez mais somos confrontados com a normalidade.
A normalidade atroz, banalidade dura, simplicidade redutora e rotina gélida.
Uma vez mais alguém considerado normal comete uma obscena e inclassificável carnificia. Só esta semana foram duas, num fenómeno que infelizmente ultrapassou as fonteiras norte-americanas, numa perigosa e assustadora globalização do terror.
Ontem, Tim Kretschmer, de 17 anos, ia calmo e disparou contra tudo o que se movia. De fato paramilitar negro, mas cara descoberta, entrou no seu antigo liceu num subúrbio perto de Estugarda, em Winnenden. Resultado 16 mortos. Tim era filho único de um empresário rico, que tinha 18 armas em casa. Gostava de ténis de mesa e era um aluno mediano que tinha acabado o liceu no ano anterior e estava a trabalhar. Normal portanto.
Terça-feira, Michael McLendon, um homem considerado "calmo, simpático e educado" de 27 anos, explodiu numa fúria assassina que o levou a matar a mãe, a avó, um tio e um primo, entre outros, antes de voltar a arma contra si próprio, nas imediações de Samson, uma pequena localidade rural no Sudeste do Alabama. Resultado 10 mortos. Normal portanto.
Somente dois casos, entre tantos outros, que tristemente se tornaram "normais" ao longo dos anos.
Numa cultura global cuja trave mestra é a comunicação e a informação, onde redes sociais se formam diariamente e amigos desconhecidos se descobrem num mero convite cibernético, é doloroso verificar que são usualmente pessoas isoladas, distantes, algo frias, anti-sociais, resguardadas e com grande deficiências de exteriorização dos seus fantasmas que cometem estes actos. E no entanto são consideradas normais.
A normalidade tornou-se visivelmente o nosso pior inimigo.

06 março 2009

A burrice espumante

No auge da cultura americana do hip-hop, em que os african-american oriundos de bairros degradados tomavam definitivamente de assalto as ondas de rádio e influenciavam gerações com os seus vídeos regados a champagne, povoados de mulheres de bikini e decorados com bling-bling, uma marca, mais do que outras, destacava-se em permanência através dos nossos ecrãs: o famoso champagne "Cristal" da casa Louis Roederer.
Em todos os vídeos, todas as festas, todas as casas, todas as limousines, todos os frigoríficos de todos os que abraçavam esta crescente cultura, havia sempre garrafas de Cristal abertas às dezenas, partilhadas por todos qual último repasto de um festim dourado. De tão famoso e revelador de estatuto que era, que chegou mesmo a constar de inúmeras letras de músicas, ditas alegremente como se de uma distinção afortunada se tratasse, como se a própria palavra nos transportasse para esse mundo de luxo e luxúria.
Tudo acabou subitamente em Junho de 2006 no dia em que o C.E.O. da famosa casa decidiu falar sobre o estilo de vida e de pessoas relativamente às quais o champagne se estaria a associar. Do alto da sua profunda pomposidade e real snobismo, Frédéric Rouzaud afirmou: "O que podemos fazer? Não podemos proibir as pessoas de o adquirirem. Estou certo que Dom Perignon ou Krug gostariam bastante de ter o seu negócio."
Foi o que bastou para que o poderoso e influente Jay-Z declarasse de imediato um boycote generalizado ao Cristal, banindo-o permanentemente de todas as suas músicas e vídeos, mas igualmente dos seus clubes nocturnos 40/40. E como as palavras de Jay-Z na indústria do hip-hop são como às palavras de Greenspan na economia, rapidamente o boycote se alastrou qual rastilho infinito, ao ponto de as mesmas letras que anteriormente vangloriavam o champagne, serem posteriormente alteradas para outras referências, outras marcas ou outros termos.
O Cristal desapareceu dos ecrãs, da música, do estilo de vida, dos costumes e hábitos da recente e emergente cultura, e com ele largos milhões de euros dos cofres da Louis Roederer.
Às vezes é mesmo melhor ficar calado.
Hoje em dia, nos clubes 40/40 de Jay-Z, se quizer beber champagne só encontrará, imagine, Dom Perignon ou Krug. Jay não perdeu a oportunidade de mostar a Rouzaud que estas duas marcas ficariam de facto radiantes com o seu negócio. E ficaram.