Citizen Pain

O despertador já tocou quatro vezes e continuo a carregar no snooze. É cedo, demasiado cedo. Acabo por me levantar e sinto as pernas dormentes. Arrasto os pés de betão. Entro a custo no poliban que tem uma das portas avariadas. No duche, a água demora a ficar quente e aproveito para adormecer mais vinte milésimos de segundo. Quando finalmente chega, ponho a temperatura a uns bons trinta graus que é para não acordar demasiado. O duche é rápido, nunca gostei de me molhar de manhã, sobretudo quando chove lá fora. Visto-me sem pressas e penso nas diversas tarefas que me aguardam no escritório. Foda-se! O trânsito é intenso, os carros multiplicam-se como cogumelos. Como é que ainda não inventaram um piloto automático é que eu ainda estou para descobrir. Ouço a voz monocórdica de um qualquer apresentador, a mim parecem-me todos iguais com a sua respiração sustida. Onde é que posso comprar o que eles tomam para estar assim de manhã? Lentamente, acabo por chegar ao meu posto de trabalho. Os meus colegas já nem me falam desde que deixei de ir almoçar com eles. Cambada de imbecis. Em cima da secretária tenho aberto um dossier “Urgente” que aguarda resposta há uma semana. Também não é hoje que vou adiantar muito, se o gajo quer o crédito aprovado que espere, de qualquer maneira vai acabar por falhar as prestações. Continua a chover torrencialmente. Não é que veja porque aqui não tenho janelas, mas consigo ouvir as pesadas gotas a baterem no prédio. Ainda só são nove horas e já me apetece voltar para casa e enfiar-me nos lençóis. Ontem chegaram mais quatro contas em atraso, mas eu já nem ligo, passaram a fazer parte integrante da minha vida. A gaja nova ao meu lado já não me sorri como no princípio, já deve ser amiga da Assistente do Director de Secção que jurou a minha morte desde que lhe entornei um café em cima da saia branca. Que caralho! O que é que eu ando aqui a fazer? Nove e cinco, hora de ir tomar um café lá abaixo e falar de bola com o dono da pastelaria. Desço à rua e percorro à chuva os vinte metros que separam os dois locais. Hoje não têm donuts e a máquina está avariada. Definitivamente já tive dias melhores. O que vale é que hoje já é sexta. Amanhã tenho um almoço com a família da minha mulher que chegou de Bragança. O que eu queria mesmo era ficar a dormir. Eternamente.